4h45 da manhã e o despertador toca em uma casa humilde na Baixada Fluminense. Lá mora Renato, que acorda pronto para mais um dia. Ele olha os grupos do trabalho e se lembra que hoje era o dia dele de levar o pão pro café.
Sem fazer muito barulho, ele toma banho, põe a água do café pra ferver e começa a se arrumar. Depois de deixar tudo pronto pra sua esposa e filhas, ele para um momento e fica observando sua família dormindo. Cada dia de trabalho, por mais cansativo que fosse, era uma forma de manter todo mundo bem e melhorar a casa onde moravam.
Ao sair de casa, encontra seus amigos e vão juntos para o ponto esperar o ônibus. A distância é grande, a estrada sempre engarrafada. Eles começam a falar do trabalho e de como as coisas estavam. Uns reclamam, outros se isentam, mas Renato prefere não comentar. Sua preocupação era verificar se o vale-refeição estava na mochila e passar na padaria pra comprar o pão e a mortadela pro café da manhã da rapaziada.
O ônibus chega ainda vazio, todos conseguem sentar e descansar um pouco. Conforme a viagem segue, o ônibus vai enchendo mais e mais, ficando quase sem espaço pra passar. O tempo estava fresco, mas em dias de calor é horrível estar ali, já que nem todos os ônibus têm ar-condicionado. Nesses momentos, várias histórias se entrelaçam, cada uma com sua singularidade, mas uma coisa era comum: trabalhadores buscando seu sustento, enfrentando trânsito, transporte caro e sem qualidade, mas vivendo, resistindo e buscando. Homens e mulheres que deixam suas casas, suas famílias e, em alguns momentos, seus sonhos, para produzir e viver.
Mesmo sem muito espaço, um jovem ainda consegue vender seus doces e entregar uma mensagem de conforto. O valor do saquinho era um real, com 10 balinhas. Renato compra 5, abre um, divide com os amigos e guarda os outros. O jovem abençoa a viagem e desce no ponto seguinte.
No fundo do ônibus, uma conversa sobre o Botafogo e finalmente a esperança de um título. Os torcedores animados, felizes pelo resultado de 5x0 contra o Peñarol, e os rivais tentando minimizar. Um dia comum no transporte coletivo do Rio.
Conforme a viagem seguia, Renato ia adormecendo. O ônibus já tinha chegado à seletiva e a viagem estava mais rápida, ou pelo menos deveria. Quando adormeceu totalmente, Renato teve um sonho. Ele saía do frigorífico onde trabalhava, pegava o ônibus de volta pra casa e, quando chegava, percebia que tudo o que ele planejava com sua esposa antes de dormir estava se realizando. Sua filha mais nova no balé, a mais velha na universidade e sua esposa com um sua barraquinha de salgado na comunidade.
Não havia mais dificuldades em casa, eles tinham tudo o que queriam: a cama nova, a geladeira dos sonhos, a TV de 65 polegadas e até um cachorro no quintal. Um som pra ouvir suas músicas no fim de semana e um quarto lindo pras filhas.
O sonho do trabalhador que cochila dentro do ônibus é realizar o sonho daqueles que ficaram em casa. E Renato sabia que ia conseguir. Mesmo adormecido, ele ouvia uns barulhos estranhos — o ônibus não andava mais.
O sonho no ônibus virou um sonho permanente, mas não praticado. Se, enquanto jovem, o Estado que não gerava oportunidades o fez largar o que acreditava pra si, o mesmo Estado não permitiu que ele realizasse o sonho da sua família.
Seus olhos não abriam mais. O destino que tanto temia se consumava ali, no silêncio do coletivo, na pressa da cidade que nunca para. Renato, como tantos outros, não resistiu ao peso de um sistema que suga vidas inteiras, sem devolver sequer a promessa de um futuro digno. O ônibus seguiu, indiferente, carregando corpos que sonham em meio ao caos, mas o sonho de Renato se apagou naquele instante.
O Estado, que deveria ser refúgio e sustentação, era a mão invisível que apertava cada vez mais o laço em volta das esperanças. Um Estado que deixa seus filhos morrerem adormecidos, sufocados por um cotidiano que cobra caro demais.
Renato não teve a chance de ver sua filha dançando balé, nem de sentir o orgulho da formatura da mais velha, nem de abraçar sua esposa empreendedora. Ele partiu sem testemunhar o fruto do seu esforço.
E assim, o trabalhador, que todos os dias adia o próprio sonho em nome de quem ama, foi vencido não pela falta de força, mas pelo abandono.
Esse texto é inspirado na NOTÍCIA DO G1
A História é fictícia, mas Renato é mais um personagem real, vítima da política de segurança ineficaz do Estado do Rio de Janeiro.
História linda e mas uma perda entre confronto de polícia e bandidos cadê a segurança? A verdade que o trabalhador sai pra trabalhar deixa família mas não sabe se volta com vida triste realidade 😞
ResponderExcluirInfelizmente um sonho adormecido 😔
ResponderExcluirEmocionante, parabéns e obrigado Searon por compartilhar conosco suas belas palavras.
ResponderExcluirEsse texto é de uma sensibilidade sublime. Que Renato e as outras vítimas que tiveram seus sonhos ceifados fiquem de alerta que precisamos urgentemente de paz e segurança.
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