uma das maiores referências culturais no RJ, Elaine construiu uma história incrÃvel e que
inspira muitas pessoas com muita luta, garra e colocando o pé na porta e abrindo caminhos
para ela e para todos que estão juntos.
1. Fala de você e se apresente:
Eu sou Elaine Cristina Marcelina Gomes, mas costumam me chamar de Elaine
Marcelina que é meu nome cultural, tenho uma filha de 16 anos.
2. Fala um pouco da sua infância e juventude?
A minha infância teve dois momentos; Até os dez anos eu vivia muito feliz porque eu
morava com a minha avó, e ao mesmo tempo muito triste porque eu queria morar com a
minha mãe. Mas mesmo assim, eu recebia muito amor da minha avó. Eu tenho uma lembrança de que com seis anos de idade eu chorava muito sem saber quando minha mãe voltava. Nunca passamos fome, mas passávamos muita dificuldade.
Toda vez que eu olho esses copos de café transparente, eu lembro dela fazendo café ralo
para ter café da manhã e da tarde. Mas assim, a gente fazia muita traquinagem. Minha avó
não gostava que a gente trabalhasse e quando fiz dez anos e fui morar com a minha mãe
que era meu grande sonho, na verdade eu fui morar com ela para tomar conta dos meus
irmãos, e foi aà que eu descobri o que era trabalhar. Eu lavava, passava, cozinhava, cuidava do meu irmão.. Mas assim, eu tive uma infância dura, só que eu brincava também, eu não entendia naquela época que era duro, eu só fazia. Tinha que tomar conta do irmão, eu tomava conta do irmão. Então eu seguia uma sequência dos adultos, mas sempre com responsabilidade, entende?
3. O que é ser mãe para você?
Ser mãe pra mim é muito forte. Primeiro que por criar meus irmãos desde cedo, mas
eu não programei, eu queria ser mãe. Queria até ter tido dois filhos, eu tenho uma
menina de dezesseis anos, mas eu também queria um menino , só que minha
saúde não permitiu até porque essa gravidez também foi de risco né, não foi algo
planejado e que deu uma surtada geral na minha cabeça.
Quando eu entendi que eu poderia estar grávida eu nem abri o resultado, foram uns
amigos que viram. Mas assim, depois que descobri que eu poderia perder aquele bebê, eu pensei, caraca, eu lutei muito. Foi a fase que eu mais cuidei da minha saúde, por que eu
sou hipertensa severa, eu não tomava café, eu comia no horário.
E como eu não tinha plano de saúde, eu chegava no hospital público e diziam “Olha, você já deve ter perdido seu bebe” com muita grosseria até. Mas eu lutei, e lutei. Mandavam eu colocar o nome no monte eu colocava, hoje eu sou do candomblé, mas eu sempre tive uma
fé, eu fui catolica até os dezoito anos, eu sabia que tinha sido batizada na umbanda e fugi
apelando pra tudo, para que minha filha tivesse hoje 16 anos de idade.
Sobre a minha adolescência, sobretudo morando na Vila Aliança onde vivi com a minha mãe dos dez até os dezoito anos. Meu avô deixou um terreno mas não sabia se ia dar conta de várias coisas muito duras que via. Por exemplo, minha mãe fazia aborto nela e em várias outras pessoas, e então com treze anos quando eu vi um aborto pela primeira vez eu simplesmente surtei e ai tinha um pé de jamelão no meu quintal e eu corria. E minha mãe sempre mandava eu chamar a Dona Dirce que era parteira e mãe de santo.. Só que ao
invés de eu chamar a Dona Dirce eu comecei a gritar “assassinas, assassinas!" então, eu
tenho essas lembranças muito fortes. Eu lembro de um primo que eu mais amava, o Tineco, e quando a gente mesmo esperou ele plantou de fuzil na favela e era o gerente. Quando ele tinha 16 anos, foi jurado de morte por um policial que dizia que se não tirasse ele da favela iria morrer.
Eu lembro que teve um dia cheguei do Sarah, colégio de formação de professores, e
andava e via a favela vazia e eu pensava “aconteceu alguma coisa”, quando cheguei em
casa e minha famÃlia toda reunida e falaram “ela já sabe” ai eu logo comecei a perguntar da
minha mãe, ai falaram que não era ela e eu olhei minha tia Maria, mãe desse meu primo
socando a geladeira e eu logo vi que tinham matado o Tineco.
Mas o que é a morte na favela? Meu primo sobretudo morreu assim, ele tinha 17 anos,
algemaram ele e falaram "corre". O caixão não pode nem ser aberto. O corpo negro na
favela, não tem vez, não tem direitos. Só pensarmos que a Marielle morre por falar em
direitos humanos, a minha mãe tem muito medo de eu entrar pra polÃtica e falar dessas
coisas… Mas eu não tenho medo de falar tudo isso, por que foi o que eu vivi… Por que não
prendeu meu primo? Precisava colocar algema e mandar correr pra depois matar? Essa é a
polÃcia que temos no Rio de Janeiro.
Essa história é muito forte pra mim, eu lembro que sempre fazia doce de banana pra ele
comer, era meio gordinho assim como eu e adorava.
A minha adolescência foi por aÃ, se vocês perguntarem se eu tive festa de 15 anos eu digo pra você que eu comi arroz e ovo, não tinha dinheiro pra isso. A nossa roupa era comprada na Feira de Câmara. O meu padrasto dava o dinheiro da roupa de natal e Ãamos com ele. Se comprasse a roupa da parte de cima, não comprava o tênis. E essa era a época do chinelo Mizuno, do Kenner que eu só fui ter bem depois quando comecei a trabalhar. E nesse perÃodo meu irmão começou a usar drogas, essas coisas e todo mundo dizia que era melhor dar as coisas pra ele pra não ter o risco dele roubar.. O que não adiantava muito, pois tudo é questão de Ãndole.
Esse irmão morreu ano passado com 43 anos, e em fevereiro eu fiz uma reunião com a
famÃlia para levarmos o corpo dele, né.. Meu irmão passou mais de 20 anos no sistema
penitenciário e desenvolveu HIV. E na morte dele, a gente tava em plena pandemia e então
era caixão fechado porque ele morreu de Covid e ele ainda tava com aquela argola que
identifica que é da polÃcia e só a SEAP que pode tirar aquilo alÃ, e a gente precisou entrar no ministério público pra tirar aquilo, ou seja, nem na hora da morte o corpo negro é livre.
4. Como é ser mulher pra você?
Ser mulher é foda para caralho! Primeiro que eu detesto o termo "mãe solteira" e tem um
termo mais bonitinho que é mãe solo, eu sou mãe porra!! Não é mãe solteira, ou mãe solo,
quem pariu foi eu, o cara apenas emprestou o esperminha. Isso que eu falo dos homens,
ele deu o esperminha, mas esse sangue, esse óvulo é nosso, que foi gestado na nossa
barriga, sou eu que tenho útero, se não desenvolve na minha barriga e eu tive um filho de parto normal.. Eu sou muito frouxa para dor mas eu consegui parir de parto normal.
Então ser mulher é isso, é ter a capacidade de sair um ser das suas entranhas. Eu tenho
uma poesia que eu falo assim, “mulher preta sou eu, mulher preta é aquela que me pariu,
mulher preta é aquela que saiu das minhas entranhas, mulher preta é aquela que me criou”
Gestar pra mulher é muito forte, claro que eu entendendo a mulher que tem direito ao corpo
e tem direito ao aborto, eu não sou adepta pelo o que eu vi na minha infância, mas eu não
critico nenhuma mulher porque o corpo é nosso e também não vou crÃticar a mulher que diz que não quer ter filhos, é uma opção. Sobretudo você pode não ter filhos, mas você nasceu com toda certeza de uma mulher.
Então ser mulher é isso, é pensar na comida que vai dar pro filho. Por exemplo, eu sou
funcionária pública mas faço projetos sociais, meu salário de funcionário pública paga
comida e casa, mas não banca meus sonhos...Não banca os sonhos da minha famÃlia. Por exemplo, eu quero pagar um curso de inglês pra minha famÃlia, mas sobretudo eu estou levando ela para trilha dos meus caminhos, seguindo meus passos.. E eu estou muito orgulhosa com isso.
5. Contudo que você passou na vida e chegar onde chegou hoje em dia, como se sente?
Eu me sinto muito realizada, mas eu sinto que falta mais, faltam outras mulheres irem
comigo, serem potentes . Eu tenho uma prima foda pra caralho que é a Carol, que cria dois
filhos.. Teve um perÃodo da vida em que ela trabalhava em um ferro velho e aà ela ficava
toda cheia de poeira.. Eu queria muito ter feito uma foto, porque assim, muitas mulheres
têm muito medo de encarar a cultura. Eu sempre participei de muitos movimentos, desde o estudantil até o de mulheres.. Tem gente que chega e fala que eu faço muita coisa, mas assim, eu nunca programei essas coisas, eu sempre fui do fazer, do colocar a mão na massa e vamos lá.
A minha mãe cozinhava muito bem, minhas irmãs pegaram esse dom dela, já eu peguei a
força da minha mãe, lembro que ela trabalhava a cada dia em uma casa com limpeza, eu
sou muito frouxa com isso, eu até faço, mas eu prefiro pensar. Uma mulher que escreve e
pensa, a revolução é pela escrita e pela literatura, e por ela você pode tudo.
Então assim, eu me sinto realizada mas a minha mãe me chamava muito de sonhadora,
todo dia eu sonho uma coisa começo a fazer. Por exemplo, em plena pandemia eu abro na
sala da minha casa uma livraria chamada Oju Obá, ela é virtual e eu tinha meia dúzia de
livros e quando abrir, eu perdi todo o espaço dentro de casa e eu sou assim, eu sou essa
mulher.
Esse lugar que nós estamos agora eu batizei de biblioteca Beatriz Moreira Costa, mãe
beata de Iemanjá, e o lançamento será no dia 27 de março e eu acho que o universo gosta
de mim, a ancestralidade gosta de mim porque eu sou uma mulher do candomblé, e com
tudo isso que estamos vivendo, uma nova variante desse vÃrus da covid 19, restrições eu
abro esses espaços e eles vão funcionar, e será de maneira virtual.
Eu vou potencializar jovens e mulheres negras até porque todos nós temos muitos dons,
né.. O Bruno Black diz que “Se tens um dom, seja” e é uma frase muito importante, porque
eu brinco que eu escrevo com a esquerda e com a direita, e como eu
descobri isso? Eu tenho uma inquietação dentro de mim do aprender e do fazer, e aà eu fui e percebi que eu posso escrever com as duas e isso é usar o lado esquerdo e direito do
cérebro, e assim vou fazendo. Eu também sei delegar, tenho uma equipe muito boa.. A
casa da Marcelina é um quilombo né, por que eu tenho várias parcerias, e acho que quando
a gente joga no universo o que você quer, tem vontade de fazer as coisas, acontecem.
Eu infartei em 2018, então 2019 foi todo pra cuidar da saúde e tinham horas que eu falava
para a terapeuta, eu me sentia vazia.. e ela dizia que eu poderia tá em casa lixando a unha, mas eu não vim ao mundo para ficar nisso. Cuidei da saúde, me recuperei e agora tenho muitos sonhos para realizar.
Me emocionei ao ler, vocês tão miúdos e tão sabidos. Uma vez Mãe Beata, me disse essa frase, guardei no coração. Ver jovens como vocês engajados e abrindo a porteira para minha cria. São meus filhos também. As portas da kasa da Marcelina estão abertas para vocês sempre. Gratidão. ❤
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